O Motu Proprio Summorum Pontificum constitui uma expressão privilegiada do Magistério do Romano Pontífice e do seu próprio múnus de regulamentar e ordenar a Liturgia da Igreja3 e manifesta a sua preocupação de Vigário de Cristo e Pastor da Igreja universal4. O Motu Proprio se propõe como objetivo:
a) oferecer a todos os fiéis a Liturgia Romana segundo o Usus Antiquior, considerada como um tesouro precioso a ser conservado;
b) garantir e assegurar realmente a quantos o pedem o uso da forma extraordinária, supondo que o uso da Liturgia Romana vigente em 1962 é uma faculdade concedida para o bem dos fiéis e que por conseguinte deve ser interpretada em sentido favorável aos fiéis, que são os seus principais destinatários;
c) favorecer a reconciliação ao interno da Igreja.
(Cf. Instrução Universae Ecclesiae, nº08)
Porque participam no múnus sacerdotal, profético e real de Cristo, têm os leigos parte activa na vida e acção da Igreja. A sua acção dentro das comunidades eclesiais é tão necessária que, sem ela, o próprio apostolado dos pastores não pode conseguir, a maior parte das vezes, todo o seu efeito.
(Cf. Apostolicam Actuositatem, n°10)
Com a publicação do Motu Proprio Summorum Pontificum, no qual se reconhece a importância da liturgia precedente e, com mais ênfase, o direito dos sacerdotes e dos fiéis ao mesmo rito, foi inaugurado um período inédito na história recente da Igreja. Este período é marcado por um constante chamado a uma salutar promoção da dignidade litúrgica e da valorização da tradição orante da Igreja.
Podemos dizer, sem qualquer dúvida, que uma parte do trabalho petrino foi transmitida aos membros mais simples da Igreja - os leigos. Num impulso de renovação e com o intuito de fazer andar o carro da reforma da reforma para que a Igreja tenha "um só rito, celebrado em latim ou em língua popular, mas baseada inteiramente na tradição do rito antigo" (cf Carta do Cardeal Ratzinger ao teólogo Heins Lothar Barth), o Papa conferiu aos leigos a tarefa de, através de uma promoção do rito anterior, expor aos demais membros da Igreja as riquezas até então negligenciadas da sagrada liturgia.
O estado catastrófico da liturgia romana é tão desolador que uma tarefa institucional de reforma da liturgia pós-conciliar seria impossível e, como afirmou o cardeal Ratzinger, traria mais prejuízos que benefícios. O segredo, para Ratzinger, não é uma volta imediata e completa ao rito antigo, mas o enriquecimento do rito novo pelo velho.
O rito novo, justamente por sua juventude e por sua construção artificiosa, apresenta uma série cosideravel de deficiências, algumas das quais tornam "bastante clara que a Novus Ordo Missae – considerando-se os novos elementos amplamente suscetíveis a muitas interpretações diferentes que estão nela implícitos ou são tomados como certos representa, tanto em seu todo como nos detalhes, um surpreendente afastamento da teologia católica da Missa tal qual formulada na sessão 22 do Concílio de Trento" (cf Carta dos Cardeais Ottaviani e Bacci à Sua Santidade Papa Paulo VI, sobre o novo Missal nº01).
Tais deficiências são reconhecidas pública e notoriamente por vários prelados da Igreja e não há qualquer prejuízo à comunhão eclesial também os leigos reconhecerem que elas existem e, mais importante, que precisam urgentemente de uma justa correção.
Como já mencionado, a liturigia ordinária não pode ser reformada inteiramente a partir do topo, isto é, a partir de ações unilaterais da Cúria Romana ou do Soberano Pontíficie. Há no mundo católico uma pujante autonomia quanto ao uso do Novus Ordo sobretudo pelos diversos elementos suscetíveis à interpretação do clero ou, mais recentemente, das pastorais de liturgia (ou equipes de liturgia) paroquiais. As liberdades presentes no novo ordinário, aliadas à negligência de alguns ordinários na vigilância litúrgica, contribuem para que orientações magisteriais se tornem letra morta; um exemplo foram as constantes exortações da Congregação para o Culto Divino.
O projeto do Papa Bento XVI é multiplicar o seu esforço através da ação dos leigos e de alguns clérigos comprometidos com a sacralidade do culto. Para isso concede "direitos" aos leigos e sacerdotes, retirando uma pequena parcela do poder decisório dos bispos, embora isso não seja admitido publicamente.
É através de um saudável apostolado dos leigos que a reforma da reforma se torna viável, que melhores traduções para o rito paulino são buscadas e que a educação da massa católica é feita.
Após a publicação da Instrução interpretativa do Motu Proprio, mais poder foi concedido aos leigos. Mas esse poder não deve ser entendido num sentido opressor e tiranizador, porque, se for compreendido dessa forma, torna-se tão danoso ao coração eclesial quanto a postura negativa dos bispos ao tradicionalismo. O poder dado pelo Papa é um poder de serviço, de amor, caridade e sacrifício.
Um poder de serviço
Para servir ao Povo de Deus através da Sua Igreja santa, promovendo uma nova educação litúrgica, totalmente radicada na fé bimilenar da Igreja.
Um poder de amor
Pois amar o próximo é trazê-lo para a verdade na sua integridade. Amar o próximo é combater todas as impurezas que, por alguma fresta, entraram no templo de Deus e deformaram Sua sagrada liturgia até "o limite do suportável".
Um serviço de caridade
Tornar os tesouros litúrgicos acessíveis aos demais é uma autêntica caridade. Contribuir para que o Sucessor de Pedro obtenha sucesso na sua luta contra os abusos litúrgicos é caridade para toda a Igreja!
Um serviço de sacrifício
O bom combate não vem sem sacrifícios pessoais. Penitência e oração, lágrimas e aborrecimentos. Tudo isso faz parte dessa autêntica manifestação de amor por Cristo e por Sua Igreja. Infelizmente é aqui que alguns leigos pecam, oferecendo apenas alguns gestos de boa vontade, mas não verdadeiros sacrifícios cristãos.
Se engana aquele que pensa que a reforma da reforma seria uma tarefa para apenas um único pontificado. Ela é ampla, profunda e complexa. O papel do leigo deve ser o de um colaborador da verdade, de um agente criativo e aberto aos novos meios. A ousadia, característica apostólica, também é requerida.
Em algumas dioceses, onde se aplica o Motu proprio, há o silêncio dos leigos na promoção do rito. Obter o rito não é suficiente, embora seja importante. "Ninguém acende uma lâmpada e a cobre com um vaso ou a põe debaixo da cama; mas a põe sobre um castiçal, para iluminar os que entram" (cf Lucas 8, 16)
A missa tradicional, no atual contexto, não sobrevive sem um apostolado produtivo e criativo. Apresentar a missa ao maior número possível de pessoas deve ser meta de todo e qualquer grupo, ou mesmo indivíduos empenhados na correta aplicação do Motu Proprio.
Na sua Instrução Universae Ecclesiae, o Papa fala, como destaquei no começo deste texto, que o Motu Proprio se propõe "oferecer a todos os fiéis a Liturgia Romana segundo o Usus Antiquior, considerada como um tesouro precioso a ser conservado". Esse oferecer a todos é um memento da função dos leigos em promover, da melhor forma possível, a forma antiga da liturgia. Essa promoção não virá, sem dúvida, das instâncias oficiais das dioceses, por mais bem intencionadas que sejam.
Infelizmente, como temos notado com pesar, a ação da esmagadora maioria dos leigos tradicionalistas é tão somente limitada à crítica ao rito novo que se torna contraproducente para a promoção do rito antigo. A crítica destrutiva e negativa ao ordus paulino não ajuda, ironicamente, o rito antigo. Por isso o Papa, que já tem um vasto conhecimento da situação eclesial e da ação nem sempre salutar dos tradicionalistas, colocou duas artimanhas jurídicas tanto no Motu Proprio quanto na Universae Ecclesiae.
A primeira é a natureza esquizofrênica do rito romano, onde dois ritos diferentes são colocados como um uso duplo do mesmo rito. Isso dá estabilidade jurídica ao rito antigo, mas aumenta a polêmica nos dois lados da disputa. Para os partidários da reforma pós-conciliar o rito novo é literalmente novo e, assim, melhor que o já superado rito tridentino. Deles não é incomum ouvirmos que o rito novo representa muito melhor os anseios da sociedade moderna. Para os opositores da mesma reforma, o rito antigo é necessariamente melhor que o novo, pois representa continuidade com a tradição.
A segunda artimanha do Papa que visa garantir a existência do missal antigo e, mais importante, sua propagação, é a de que fiéis ligados a movimentos separatistas (sedevacantistas) ou que questionam a validade do novo ordo não possam se beneficiar. Isso visa proteger os leigos que eram rotulados como cismáticos ou hereges, mas também visa proteger os leigos engajados na reforma da reforma de um apostolado danoso.
Mesmo o finado Arcebispo Lefebvre não questionava a validade dos sacramentos reformados, embora tivesse dúvidas. Dom Lefebvre questionava a legitimidade jurídica do novus ordo, algo que, com a teoria das duas formas, foi resolvido pelo menos temporariamente. As questões teológicas de Dom Lefebvre sobre a missa nova são as mesmas de alguns poucos bispos que, só agora, são conhecidas.
Para arrematar, ficamos sabendo do cancelamento das celebrações da missa antiga em Brasília por falta de povo. Só posso emitir um juízo através da forma como a notícia foi publicada, mesmo sem conhecer plenamente o contexto do assunto. A primeira pergunta que faço é como e por que a missa foi abandonada nesta capelania? Pelo que sabemos a missa não era muito querida em Brasília, mas continua nas dependências do Instituto Bíblico ligado a um bispo emérito da arquidiocese.
A missa tradicional não se manterá por si, sem um apostolado tradicional, como eu já escrevi acima. Se não havia "povo" suficiente para manter dois centros de missa, por que eles existiam? Isso, de fato, atrapalha a vida diocesana. Penso que, se os dois centros servem a dois grupos distintos e opostos, isso também é um prejuízo explícito e testemunha contra o fiel tradicionalista que não consegue estar unido a nada nem a ninguém.
Outro caso de supressão da missa, que para nós é um exemplo didático do apostolado contraproducente, aconteceu em Londres com a desistência do Cardeal Burke de rezar uma missa por conta de uma afronta objetiva aos bispos ingleses. Como lemos no Fratres in Unum:
(...)Em uma carta a Daphne McLeod, presidente de Pro Ecclesia et Pontifice, grupo ao qual ele deveria se dirigir, o Cardeal Raymond Burke disse ter surgido, por parte de ”várias fontes”, inclusive “Católicos devotos e fiéis” na Inglaterra, uma preocupação sobre sua assistência ao evento de 18 de junho. Cardeal Burke, Prefeito do Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica do Vaticano, cujo discurso era intitularia “A restauração da disciplina da Igreja e evangelização”, apontou que o texto do formulário de inscrição do evento afirmava que “nossos bispos são obstinados em sua recusa a permitir que nossa gloriosa Fé Católica seja ensinada nas escolas”. Sra. McLeod lhe disse que, enquanto seu grupo é frequentemente visto como “delatores inevitavelmente impopulares com o establishment [i.e., os que governam]“, sempre mostra respeito para com os bispos. Ela implorou ao Cardeal que reconsiderasse sua decisão de retirar sua conferência e comentou sobre como ela pretendia pagar uma considerável conta de 5 mil libras [aproximadamente 13 mil reais] pelo local e jantar após a conferência.
Esse tipo de afronta aos bispos é tolice. Quem detém o poder? Os bispos! E os bispos ingleses toleraram tal evento até o momento onde eles foram atacados diretamente. O resultado dessa audácia foi: 5 mil libras em prejuízo e uma derrota aos fiéis tradicionais do mundo todo. Imprudência!
Sabemos que os bispos não aprovam e são contrários ao Motu Proprio e é tarefa do católico leigo tradicionalista trabalhar essa situação visando extrair o melhor possível. E nessa tarefa cabe muita prudência e muita diplomacia.
Quero concluir reafirmando tudo o que expus acima de uma forma clara: o apostolado dos leigos é fundamental não só para que a missa antiga exista na diocese, por exemplo, mas para que o Papado de Bento XVI produza frutos. Cada leigo em seu pequeno grupo ou mesmo individualmente é um elemento importante nesta tarefa e deve trabalhar da melhor maneira possível para a reforma da reforma marche.
Mesmo com opiniões divergentes quanto ao novus ordo, o concílio, etc. os leigos devem concordar com uma base sólida: ajudar a promoção da liturgia santa e sagrada. Todo o resto é discutível desde que, naturalmente, com muita caridade e prudência.