Bento XVI, antes, como cardeal e teólogo, e depois, como Papa, defende que a forma precedente da liturgia - hoje conhecida como forma extraordinária - seria capaz de exercer um efeito benéfico na forma ordinária.
É fato que, além de diferenças teológicas profundas e pontuais, o rito moderno é extremamente flexível, bem diferente do "rubricado" rito tridentino. É fato também que essa flexibilidade permitiu, e ainda permite, aos sacerdotes introduzir - lícita ou ilicitamente - práticas questionáveis dentro da liturgia. Um exemplo da introdução lícita é a comunhão na mão; embora tenha começado de forma ilícita, tornou-se um indulto aplicado quase que universalmente na Igreja, contribuindo para muitos sacrilégios. Os exemplos ilícitos seriam as missas com fantoches, com elementos da macumba, missas gaúchas, etc.
Podemos dizer que o Novus Ordo é, do ponto de vista das rubricas, uma folha em branco. E foi feito dessa forma intencionalmente, pela comissão comandada pelo Mons Bugnini. Havia o desejo não só de livrar o rito romano das suas raízes católicas - consideradas por Bugnini um elemento divisor no ecumenismo - mas também de diminuir os gestos e o "pesado" legalismo do rito, removendo as várias genuflexões, os sinais da cruz, etc.
Não é segredo para ninguém que Bento XVI, através da cunhagem de termos novos como "hermenêutica da continuidade e da ruptura", "reforma da reforma", "forma ordinária e extraordinária", vem oferecendo ao mundo católico a possibilidade de começarmos a corrigir os abusos.
Uma delas seria, pelo maior contato com a forma antiga, a forma moderna se beneficiar da "
Ars Celebrandi" tradicional. Ou seja, rezar o
Novus Ordo com a mesma mentalidade que se rezava o
Vetus Ordo.
Podemos colocar o problema litúrgico latino em dois grandes planos: externo e interno. No plano externo encontram-se aquilo que está sujeito aos sentidos de forma imediata como, por exemplo, a vestimenta, a música, o uso ou não do incenso, as rubricas, a forma de receber a comunhão, etc. Internamente encontramos a essência teológica da missa, seu sentido dogmático.
A crise do Novus Ordo está profundamente ligada aos dois campos. Seria como, para fazermos uma comparação, um iceberg. No iceberg vemos uma pequena parcela do seu tamanho real, que emerge, mas o restante continua submerso, quase inacessível ao observador ordinário. Do mesmo modo, no rito moderno, as manifestações exteriores são um pequeno sinal de uma crise interior muito profunda, compreendida apenas quando dispomos de ferramentas (estudo histórico e teológico) adequadas.
Assim, compreender a missa sertaneja, por exemplo, como sendo apenas um
abuso litúrgico - corrupção do plano externo - é um erro primário. Precisamos mergulhar e descobrir que tipo de pensamento conduziu à missa sertaneja.
O grande risco de nos apegarmos apenas aos belos paramentos, ao uso do incenso ou do latim, seria reduzir a dimensão litúrgica unicamente ao seu plano exterior; tornar-se-ia legalismo superficial. Há mais na liturgia, como sublinhei, que a sua dimensão material objetiva.
Então - argumentaria aquele que defende a invalidade do rito moderno ou sua natural indigência frente à Tradição - enriquecer o Novus Ordo seria uma tentativa legalista inoportuna ou mesmo inútil, pois não trataria o grande problema deste rito, que se encontra no seu plano interior, submerso por uma "nouvelle theologie" que se apoderou do movimento litúrgico.
A resposta para tal afirmação seria complexa. Primeiro, é preciso ter em conta que a liturgia é moldada pela ação do Espírito Santo, sendo um dom sobrenatural para a Igreja, pois é o próprio Deus quem nos diz como Ele deseja ser adorado. É evidente que o culto divino e a santificação do povo, que é um dos seus frutos, é desejada por Deus, não sendo, portanto, uma criação humana.
Entretanto, a liturgia também recebe a
influência das devoções e piedades, do contexto histórico (veja as missas celebradas nas catacumbas de Roma e os grande pontificais do século XV). Tais influências atuam eminentemente no aspecto mais superficial da liturgia, não mudando sua natureza.
Outra questão importante é a centralidade da liturgia em Deus, que difere o culto da Igreja da idolatria, que é o centrar-se num ídolo. Dessa forma podemos afirmar que a liturgia da Igreja é divina e teocêntrica por natureza e excelência.
A questão que deveríamos nos perguntar seria: o rito moderno é, por natureza e excelência, um rito teocêntrico e divino? Os críticos do Novus Ordo partem de um princípio de observação superficial, ou seja, olham o cume do iceberg e não o que está submerso e produzem uma rápida resposta a esta indagação, ao meu ver não suficientemente refletida.
É verdade que, desde o Concílio Vaticano II, a centralidade no homem (antropocentrismo) tomou o lugar do teocentrismo e isso, naturalmente, reflete na liturgia. O que vemos hoje, a revelia do que é prescrito pela Lei da Igreja, é o triunfo de uma mentalidade mundana no rito oriunda sobretudo da negligência dos bispos, já que eles são os primeiros vigilantes da liturgia.
Se a razão deste triunfo antropocêntrico é o Vaticano II, a culpa deve ser compartilhada entre os Papas Pio X, Bento XV, Pio XI e Pio XII, pois os bispos presentes no Concílio não foram sagrados especialmente para o Concílio, pelas mãos de João XXIII, mas o foram pelos seus predecessores. Assim,
se admitimos que o Vaticano II é uma apostasia, sejamos igualmente honestos em onerar e culpabilizar os Papas do passado por essa situação. E se seguirmos esse raciocínio, poderíamos igualmente chegar a responsabilizar o próprio apostolo Pedro.
Podemos admitir que mais de 2000 bispos reunidos, invocando a assistência do Espírito Santo, tenham, deliberada e intencionalmente, traído a Igreja, apostatando a sua fé? 2000 bispos que, meses antes do Concílio, defendiam os dogmas de Niceia, Trento e do Vaticano I, pregavam o catecismo e diligentemente conduziam as suas dioceses poderiam tê-lo feito?
Alguns argumentariam que havia, durante o Concílio, uma minoria hábil em manipular a maioria silenciosa. Isso não é de todo incorreto e de fato aconteceu. Mas se o Concílio representasse, em si mesmo, essa terrível apostasia, como eles não poderiam tê-lo visto?
Os críticos do Concílio e do Novus Ordo não raramente desejam um regresso aos tempos idos da primeira metade do século XX, onde, segundo eles, a Igreja triunfava em esplendor e ortodoxia. Pois os bispos que conduziam essa Igreja triunfante foram exatamente os mesmos que,
segundo esses críticos, afundaram a barca de Pedro num lamaçal modernista. Como isso foi possível?
De fato, compreender se o Concílio Vaticano II, embora apresentando sérias dificuldades e sendo alvo de justas críticas, foi ou não a gênesis de uma nova Igreja antropocêntrica é fundamental para que respondamos se enriquecer o rito moderno é ou não adequado.
Para justificarmos que 2000 bispos tenham apostatado sua fé durante o Concílio Vaticano II, precisamos usar uma série de arcabouços teológicos inéditos que jamais foram ratificados pelo Magistério da Igreja. Precisamos colocar as promessas de Cristo a Sua Igreja entre parenteses ou afirmar que a Igreja, conservada por séculos na sua universalidade e reta doutrina, existe apenas em determinadas comunidades.
Tais arcabouços não nos oferecem uma resposta adequada, mas apenas mais motivos para desespero. Eles podem ser usados para justificar qualquer coisa, desde a insubordinação até o esvaziamento da Cátedra de Pedro e, por conclusão, o perecimento da Igreja. Caímos assim no mesmo erro protestante, pois como saber se a comunidade a que pertenço é onde reside a Igreja? Como ter certeza irrefutável e absoluta, se a única certeza (
que a Igreja Católica, com a Sé em Roma é a verdadeira e única Igreja de Cristo) foi refutada e relativizada?
Mas é oportuno notar que tanto os defensores radicais do concílio quanto seus opositores radicais encontram-se muito mais próximos uns dos outros do que da Igreja Universal. Encontram-se próximos na visão - até o momento condenada pelo Papa como "espírito do concílio" - que o Vaticano II é a gênesis da nova igreja. Para que um exista é necessário que o outro também exista.
É importante frisar que o Concílio (Vaticano II) nos trouxe uma nova perspectiva e que sua linguagem, dada a conciliar posições contrárias em busca de consenso, resultou em problemas sérios para Igreja. Michael Davies falava em "bombas-relógio" dentro dos textos do Concílio, indicando que as mesmas poderiam (ou não) explodir em afirmações contraditórias. Davies, entretanto, nunca negou o lugar do Vaticano II, nem afirmou o mesmo como sendo o resultado de uma apostasia
pretendida pelos Padres.
A leitura do Santo Padre Bento XVI, afirmando que a Igreja deve continuar com a Tradição e que o Vaticano II deve ser lido dessa maneira, encontra resistências de um lado e de outro (novamente denotando a dependência reciproca entre as duas partes). Alguns afirmam que não é apenas um problema com o
espírito do Concílio, mas também com sua letra, ou seja, os textos do concílio apresentam problemas. A Hermenêutica da Continuidade não ignora tal problema e também ela nos apresenta momentos de esclarecimento quanto a letra, levando a um entendimento católico do espírito (vide a
Nota Previa sobre a colegialidade, que satisfez os membros do
Coetus Internationalis Patrum).
O Novus Ordo pode ser considerado uma
tabula rasa, criado a partir de consensos, mas que, no final, não conseguiu agradar ninguém. Não agradou aos radicais de direita, porque estes viram nele elementos
demasiado modernistas ou protestantes. Não agradou os radicais da esquerda porque
não viram nele
todos os elementos modernistas ou protestantes.
Mas, retomando nosso questionamento original, poderia o Novus Ordo ser enriquecido pelo espírito da antiga liturgia? Responder isso é responder se a Hermenêutica da Continuidade é possível ou não.
A deficiência nas rubricas do Novus Ordo, que é uma fresta por onde muitas vezes a fumaça de Satanás pode entrar no templo de Deus, permite também que a sua expressão exterior seja revestida daquela mesma sacralidade presente na antiga liturgia (por uma fresta pode passar fumaça ou luz). Compreendendo que o rito é válido, ou seja, quando preenchidos os requisitos para que a missa seja válida (matéria, forma, intenção, ministro válido), podemos ter uma liturgia externamente muito mais próxima da liturgia anterior.
À luz da Hermenêutica da Continuidade não apenas o aspecto externo (gestos, latim, reverência, etc) se modifica, como uma luz que ilumina a escuridão, mas também o aspecto mais profundo do Novus Ordo começa a se transformar.
Quando as péssimas traduções são eliminadas, os artifícios humanos são removidos e a liturgia (nova) encontra seu rumo e sua direção teocêntrica, temos uma conversão entre o novo e o velho e, somente aí, há espaço para o enriquecimento autêntico e frutuoso.
Todo enriquecimento dos elementos externos da liturgia reformada é inútil e fútil se não for uma manifestação de um enriquecimento interior e profundo. Tal enriquecimento interior começa com a escuta da palavra da Igreja, da sua voz e da sua Tradição.
Podemos afirmar que, após o Motu Proprio
Summorum Pontificum, a antiga liturgia tornou-se o principal instrumento da Hermenêutica da Continuidade capaz de, pelo contato, preencher o novo rito. Por isso o Papa faz claramente o apelo aos bispos, para que esta liturgia esteja disponível a todos e estes, por sua vez, fazem ouvidos surdos a ele e se lhe impõem tamanha resistência.
O melhor bem que podemos oferecer para a Igreja Universal é lutar para que a liturgia encontre, em todos os lugares, sua orientação a Jesus Cristo. Isso não descarta o enriquecimento da forma ordinária, como forma da mentalidade católica ser restabelecida, mas passa quase obrigatoriamente por ela. De fato, o retorno a um catolicismo verdadeiro praticado em todas as paróquias não será conseguido apagando o Concílio ou Novus Ordo da história, já que a Igreja não dispõe de poder suficiente para alterar eventos passados ou erradica-los da linha do tempo.
Todas as soluções fáceis tem sua atraente, mas enganosa beleza. Após o Concílio pensou-se, ingenuamente, que haveria uma primavera na Igreja. Isso não aconteceu com o período pós-conciliar de Niceia ou Éfeso, nem mesmo após os concílios de Trento e do Vaticano I. Antes, após os concílios a Igreja enfrenta terríveis dificuldades, como cismas e rebeliões.
Escutar, rezar e obedecer a Igreja, eis o nosso único caminho, a nossa única via de conversão do mundo, ainda que signifique, por algum motivo, sofrer. O ensino tradicional da Igreja nos ensina o valor do sofrimento; tal valor não pode ser mensurado por aqueles que, enganados por falsas soluções, embriagaram-se no absinto do progressismo ou estão alucinados pelo ópio do falso tradicionalismo.