É impressionante como o trabalho dos peritos em Direito Canônico do Vaticano deve ser frustrante. Escrevo isso porque não importa o quão claro eles tentem ser, sempre alguém tenta distorcer algumas coisas.
A instrução Universae Ecclesiae nem teve tempo de secar a tinta no papel e alguns sites católicos já lhe aplicam uma interpretação totalmente nova, distanciada da realidade recente da Igreja.
Um deles foi o Zenit, ligado aos Legionários de Cristo. Num texto mais ou menos, o Zenit coloca a seguinte "interpretação" sobre o documento, num dos pontos que dará mais trabalho aos tradicionalistas junto aos seus bispos diocesanos. Eis a interpretação:
A Instrução adverte que “os fiéis que pedem a celebração da forma extraordinária não devem apoiar nem pertencer a grupos que se manifestam contrários à validade ou à legitimidade da Santa Missa ou dos Sacramentos celebrados na forma ordinária, nem ser contrários ao Romano Pontífice como Pastor Supremo da Igreja universal”.
Quer dizer, os fiéis ou grupos que não estão em comunhão plena com a Igreja católica, ou que rejeitam a reforma litúrgica realizada após o Concílio, não podem em nenhum caso exigir que se lhes deixe utilizar uma paróquia ou lugar de culto.
Eu entendi que os leigos não devam apoiar tais ideias, mas isso não significa que "os fiéis ou grupos que não estão em comunhão plena com a Igreja católica, ou que rejeitam a reforma litúrgica realizada após o Concílio, não podem em nenhum caso exigir que se lhes deixe utilizar uma paróquia ou lugar de culto". Vejam como o Zenit foi criativo na interpretação!
A instrução não quer, sejamos claros, fiéis pertencentes ao sedevacantismo e esta é a interpretação mais correta que uma pessoa, com algum sinal de lucidez, consegue alcançar. O item 19, justamente onde se pede que os fiéis não pertençam aos grupos sedevacantistas ou neguem a legitimidade de missa nova, não prevê qualquer tipo de sanção, muito menos são proibidos, pelo texto da Universae Ecclesiae, de usar algum lugar de culto.
A interpretação da Zenit se liga diretamente aos fiéis da Fraternidade de São Pio X, porque a agência de notícia escreve (adicionando ao texto papal, um costume bem ao estilo dos bispos que imprimiam normas adicionais para impedir o efeito do Summorum Pontificum) "os fiéis ou grupos que não estão em comunhão plena com a Igreja católica". O termo "comunhão plena" não aparece uma única vez no texto oficial nem nas suas diversas traduções.
Sabemos que esse conceito de comunhão plena se aplica costumeiramente, pela Santa Sé, aos membros do clero da FSSPX. Ressalto que se aplica ao clero da fraternidade (incluindo os bispos) que se encontra canonicamente irregular, por isso a expressão "não estar comunhão plena". Os fiéis da Fraternidade são católicos como outro qualquer, incluindo o Papa, eu, você e os jornalistas da Zenit.
A FSSPX não é uma Igreja paralela, um cisma ou qualquer coisa do gênero. E mesmo se fosse - coisa que não é - poderia gozar da gentileza ecumênica de muitos padres e bispos que, sem qualquer cerimônia, oferecem locais católicos para cerimônias de hereges ou cismáticos.
Mais adiante no artigo, lemos:
Todo sacerdote pode celebrar na forma extraordinária, sempre que não esteja impedido canonicamente, entre outros casos, porque sua ordenação não seja legítima ou porque esteja suspenso a divinis ou outros casos previstos pelo Código de Direito Canônico. De novo isso exclui, por exemplo, os sacerdotes da Fraternidade São Pio X e outros grupos sismáticos (sic).
Reparem no "de novo" usado, uma referência que a afirmação que citei acima era direcionada aos lefebvristas.
Sim, os padres da Fraternidade estão suspensos e suas ordenações ocorreram de forma marginal, do ponto de vista canônico. Mas a Igreja (e não a Zenit) não vê essa situação tão "preto no branco" assim. Durante a peregrinação dos membros da FSSPX à Roma, no ano 2000, os padres e bispos da Fraternidade puderam contar com a estrutura das Basílicas romanas para as suas missas. Estavam tão suspensos ontem quanto hoje e, com um agravante, no ano 2000 ainda pesava a sombra da excomunhão, revogada muitos anos depois por Bento XVI.
Em Lourdes os bispos puderam usar as estruturas católicas "oficiais", em Lisieux também. Então, caros amigos da Zenit, é preciso analisar a história recente antes de emitir normas apostólicas em seu site!
A Zenit julga-se no direito de emitir normas complementares nos decretos pontifícios e o faz delirantemente!
É claro que essa interpretação da Zenit não é uma coisa isolada, mas um sinal de como, mesmo com um texto claríssimo, os bispos contrários à forma extraordinária podem, mais uma vez, tentar atravancar o caminho dos fiéis. Basta classifica-los como membros ou apoiadores desses " grupos que não estão em comunhão plena com a Igreja católica". E por "grupos que não estão em comunhão plena" vocês verão uma longa lista, desde a FSSPX até a Montfort. Preparem-se!